06.11.2014
[ Brasil ]
Participação Social, o novo fantasma das elites
Ladislau Dowbor
Adital
Reação feroz dos
conservadores ao decreto de Dilma revela incapacidade de compreender
sociedades atuais e interesse de manter política como monopólio dos
"representantes”
O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos
do que do fundamento da democracia: "Todo poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Está logo no artigo 1º, e garante portanto a participação cidadã através de
representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente
eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode
ser ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver
cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes.
A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a
democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A
verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocaram nos
seus discursos a que população participe, apoie, critique, fiscalize, exerça os
seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços
institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira
organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano
passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em
mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente
porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de
transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus
diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as
necessidades da população e os processos decisórios.
Os resultados foram que se construíram viadutos e outras
infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e
paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não
investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica
como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a
cada enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde
são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política
tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da
população.
Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja
ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um
residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As
horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as
levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas. Mas o que as pessoas
necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de
ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui,
ao gerar canais de participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das
necessidades reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens;
saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos.
Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia,
trata-se de uma defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se
trata de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão
pública.
Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos
está cada vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer
e semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam
em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos
processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior
setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde,
representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA
emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação,
cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao
bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de
desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e
educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.
A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna
é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a
cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no
agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e a segurança e
assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para
todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam
são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode
ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para
o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham.
São formas densas de organização da sociedade.
Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas,
fizemos na Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da
Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de maneira
participativa e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente, nas regiões
onde trabalham, tanto a mortalidade infantil como as hospitalizações. O custo
total por criança é de 1,70 reais por mês. A revista Exame publica um estudo
sobre esta Organização da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se
consegue tantos resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição
mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as grandes
empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que chega a
organizações deste tipo se multiplica.
A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada
em que o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna
qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a
política pública se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar os
resultados que lhe interessam. A eficiência aqui não é porque se aplicou a
última recomendação dos consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time,
lean-and-mean, TQM e semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os
destinatários finais das políticas se apropriem do processo, controlem os
resultados.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas
comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e
sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos
Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram grande parte dos projetos,
simplesmente porque são mais eficientes. Não seriam mais eficientes para
produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no
controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente
ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis. O setor
público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os
mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas
(PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as
organizações sociais. O seu conceito de privado é muito estreito.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas
experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países
desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas
descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as
políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as
instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas
tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação
de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio em nome da democracia não ajuda
nada.
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