quarta-feira, 12 de junho de 2013

Tempos de Ditadura- 2.




25 de Fevereiro de 2013 - 9h15
Paulo Fonteles Filho: A segunda morte de Carlos Alexandre Azevedo

Por vários dias tenho pensado em ti, Carlos Alexandre. Teu desaparecimento atingiu-me numa tranquila e chuvosa tarde de domingo, daquelas preguiçosas, silentes, onde tudo, o tempo e as pessoas parecem imperturbáveis.

Por Paulo Fonteles Filho*

http://www.admin.paginaoficial.ws/admin/arquivos/biblioteca/dermi38296.jpgAtravés das redes sociais é que soube, enfim, que havias como dizem alguns jornalistas, enfrentado tua segunda morte. A primeira, em 1974, onde te submeteram mesmo com um ano e oito meses a infames torturas. Infante levastes choques elétricos, tivestes o maxilar quebrado, passastes fome por dias, além de outras sevícias próprias daqueles terríveis dias onde os verdugos comandavam não apenas os destinos de nossa humanidade, mas decretavam como professores de deus, a morte e a última morada de toda uma geração de brasileiros.

A fina navalha do tempo cortou-me a carne e desde então, estiolado, convivo com a madrugada em que partistes, solitário, com as digitais do carrasco em teu corpo adulto. Fora a forma de libertar-te daqueles porões.

Dias depois fui visitar teu pai, Dermi Azevedo. Conheci um homem que, mesmo devastado pela tua ausência, respirava a impune convicção de que, mais do que nunca, é preciso travar a contenda em defesa da memória dos que lutaram para emancipar o país brasileiro, em definitivo, dos tempos da cadeira-do-dragão, dos estreludos generais que têm as mãos sujas de sangue, do covarde silêncio como regra e dos calam sobre teu corpo, em tua morte, como ensina a canção de Milton Nascimento.

Sento-me nesta madrugada porque, também, fui contigo por estes caminhos onde, dentro da gente, há uma indignação atroz na qual convivemos por todos os dias, desde a mais tenra idade até a maturidade. São os sucessivos dias, milhares deles, em que o peito tinge-se em luta, a luta pelas estradas a seguir, se nos quedamos e ficamos de joelhos ou se nos levantamos como nossos pais, e tomamos a espada em nossas mãos. Na brutalidade da somatória de todas as guerras estamos como rudes e ensangüentados soldados, combatendo os lobos febrentos, os mordaceiros da luz e os violadores de crianças.

Teu grito, último, denuncia.

Meus pais, como os teus, também foram presos e barbaramente torturados. Minha mãe, grávida, levou chutes na barriga crescida e por meses fora brutalizada no Pelotão de Investigações Criminais do Ministério do Exército em Brasília. Nasci no antigo Hospital da Guarnição, hoje Hospital das Forças Armadas (HFA), em fevereiro de 1972.

Tenho em mim, Carlos, a memória do ventre.

Sinto as reminiscências da carne violada e o heroísmo de Hecilda que, mesmo em cativeiro teve a ousadia de peitar o bandidesco general Antônio Bandeira. No dia em que vim ao mundo, derrotados por não terem nos matado e jogado num cemitério como indigentes, como fizeram em Perus e no Araguaia, cunharam a célebre “Filho desta raça não deve nascer”. Depois atrasaram a entrega à família porque, segundo a memória de minha avó, não haviam encontrado algemas que davam em meus pulsos de recém-nascido.

Uma das primeiras coisas que soube sobre mim mesmo é que havia nascido na prisão e de que meus pais eram comunistas.

Nesta hora reflito sobre eles, poderiam ter se acomodado. Mas não, voltaram a estudar e ao combate, depois de enquadrados pelo artigo 477 (cuja autoria deve-se ao fascista Jarbas Passarinho) que preconizava que estudantes condenados por “terrorismo” não poderiam retornar aos estudos por três anos. Refeitos, minha mãe segue a carreira acadêmica como professora de Ciência Política na Universidade Federal do Pará e meu pai, advogado de posseiros no Araguaia, foi covardemente assassinado pelo latifúndio em 1987.

Mas o que fazer diante destes testemunhos, de tua segunda morte?

Sinto amigo, que em tempos de Comissão Nacional da Verdade (CNV) devemos cobrar que estejam embutidos, no relatório que será apresentado aos brasileiros em maio de 2014, os acontecimentos criminosos que foram perpetrados, por questões políticas, contra a infância deste imenso país dos trópicos.

Tua segunda morte carrega o legado de que, mais do que nunca, devemos cuidar da tenra idade contra os infanticidas, dos de ontem como, também, na atualidade.

Com ousadia, sem procuração alguma, a não ser pela memória da carne violada, tomamos para nós, por tais testemunhos, a exigência de que quem nos torturou, no ventre ou fora dele, responda pelos crimes de inexorável covardia, contra aqueles que devem ser protegidos desde a fecundação.

Assim cumprimos com a civilizatória missão de proteger os filhos do povo brasileiro.


* Paulo Fonteles Filho é membro da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia e colaborador do Vermelho

Tempos de Ditadura - 1.



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sábado, 6 de fevereiro de 2010
Filho de militantes de esquerda, Carlos Alexandre foi preso e torturado quando era bebê. Cresceu agressivo e isolado. Aos 37 anos, ele ainda sente os efeitos dos anos de chumbo: vive recluso, sem trabalho nem amigos - sofre de fobia social

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiZ6duVr2NBZf0nCM9D5XYyya58-e1enMvas11Fi95vA2QXUiESV2U8pIPUdRMtILgLufcItWR9J1DGlG_oHhy9o9IJYGzkAtWuzi2Gndd6YT_AsZtyDQln-N7DwdsTOHb2-uyM-ZBAvs/s320/!cid_FFCBAB69D21A4E438CC8FE1E73B925BB@Andre.jpg- Solange Azevedo, na revista IstoÉ

Ele tem olhos de aflição e feições de dor. Suas palavras saem cadenciadas, são quase sussurros. “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura”, diz. “Os meus pais foram presos e eu fui usado para pressioná-los.” Carlos Alexandre Azevedo tinha 1 ano e 8 meses quando policiais invadiram a casa da família, na zona sul de São Paulo, e o levaram para a sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). Era 15 de janeiro de 1974. Bem armados e truculentos, os agentes da repressão o encontraram na companhia da babá – uma moça de origem nordestina conhecida como Joana. Chegaram dando ordens. Exigiram que os dois permanecessem imóveis no sofá. Apenas Joana obedeceu. Como castigo pelo choro persistente, Carlos Alexandre levou uma bofetada tão forte que acabou com os lábios cortados. Foram mais de 15 horas de agonia. O drama de Carlos Alexandre – um dos mais surpreendentes dos anos de chumbo – veio à tona no momento em que o governo brasileiro discute a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar casos de tortura, sequestros, desaparecimentos e violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Carlos Alexandre decidiu revelar sua história, com exclusividade, à ISTOÉ depois que o seu processo de anistia foi julgado pelo Ministério da Justiça. No dia 13 de janeiro, ele foi declarado “anistiado político”. Deve receber uma indenização de R$ 100 mil por ter sido vítima dos militares. “Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em Brasília, me senti compreendido.

As pessoas sabiam que o que eu vivi foi verdade”, alega. “A indenização não vai apagar nada do que aconteceu na minha vida. Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado falhou comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social.” Fragmentos da vida de Carlos Alexandre, hoje com 37 anos, estão guardados na memória do pai, o jornalistae cientista político Dermi Azevedo. Outros ficaram entre as lembranças da mãe, a pedagoga Darcy Andozia. “Minha família sempre foi muito retraída, sem diálogo. Não costumávamos falar sobre tortura. Esse assunto sempre foi tabu entre nós”, conta Carlos Alexandre. Ele descobriu o próprio passado ao remexer em gavetas, aos 10 ou 11 anos de idade. Misturado a fotografias antigas e a uma porção de papéis, encontrou o desenho de uma vaquinha, conhecida na época por simbolizar a “esperança”, com o seguinte recado: “Deops 1974: Quando você ficar mais velho, seus pais vão te contar a sua história.” Parte do sofrimento da infância lhe foi revelada pela mãe. “Cacá apanhou porque estava chorando de fome. Os policiais falavam que, naquela idade, ele já era doutrinado e perigoso”, lamenta Darcy. Presas políticas disseram ao pai que o menino fora torturado no Deops. “Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vítima de choques elétricos e outras sevícias. Ele foi jogado no chão e bateu a cabeça”, afirma Dermi. “Maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade.” Quando os agentes levaram Carlos Alexandre e a babá, Darcy não estava em casa – seria trancafiada no Deops horas depois.

“Até hoje sofro os efeitos da ditadura. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social”

Ela havia saído cedo em busca de ajuda para o marido preso. Aquela era a segunda invasão à residência dos Azevedo. Na noite anterior, policiais vasculharam todos os cômodos em busca de “material subversivo”. Encontraram um livro intitulado “Educação Moral e Cívica & Escalada Fascista no Brasil” e o consideraram uma injúria às autoridades. Dermi, Darcy e a educadora Maria Nilde Mascellani foram processados – e absolvidos – sob a acusação de tentar difamar o Estado brasileiro. Dermi e Darcy eram ligados aos padres dominicanos e a uma das principais vozes que lutavam contra a ditadura, o então cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Faziam parte da retaguarda do movimento de resistência – abrigavam militantes que se preparavam para embarcar para o Exterior. O período de cárcere foi tenso e doloroso. Darcy permaneceu mais de 40 dias na cadeia. Foi pressionada psicologicamente, mas não sofreu violência física. Dermi ficou cerca de quatro meses no xadrez. Apanhou muito. Quando já não suportava mais a dor, invocava o nome d’Ele: “Ai, meu Deus. Meu Deus.” Enquanto Darcy esteve atrás das grades, Carlos Alexandre foi cuidado pelos avós – e continuou a sofrer as consequências de escolhas que não foram suas. “Em certos momentos, tive raiva porque meus pais expuseram os filhos. Mas depois senti orgulho porque eles lutaram contra os abusos dos militares e fazem parte da história do Brasil”, diz. Carlos Alexandre padece de um transtorno chamado pela ciência de fobia social: um medo excessivo e persistente de se expor à avaliação alheia. Quem tem esse distúrbio se esquiva sistematicamente de contatos interpessoais – principalmente com pessoas do sexo oposto, desconhecidas ou autoridades – porque teme ser humilhado ou rejeitado.

O diagnóstico foi mencionado pela psicóloga Ana Maria Falvino, que tratou de Carlos Alexandre, num documento encaminhado à Comissão de Anistia. No texto, a psicóloga detalha a evolução do transtorno no paciente e situações relatadas pela família Azevedo. Mas não afirma categoricamente que o problema dele é consequência direta de tortura. As situações vividas por CarlosAlexandre, no entanto, o inserem no grupo de risco descrito pela medicina. De acordo com o médico Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, cerca de 30% dos casos de fobia social têm origem genética. Os outros 70% se devem a vivências complexas.Os pais são o primeiro modelo para a criança. Observar como eles lidam com as adversidades, se enxergam o ambiente social como fonte de prazer e alegria ou como algo desconfortável e ameaçador, se são tímidos ou têm muitos amigos, é de extrema importância para o bom desenvolvimento infantil. Bernik afirma que crianças provocadas e maltratadas por colegas e que vivem experiências marcantes de rejeição e de sofrimento são mais suscetíveis à fobia social na vida adulta. Logo que Dermi deixou a prisão, em maio de 1974, a família toda se mudou para a sua terra natal, o Rio Grande do Norte. Primeiro foi para Currais Novos, no interior do Estado. Em seguida para a capital, Natal. A violência psicológica e as agressões físicas – como as intermináveis sessões no pau de arara e os repetidos golpes na cabeça, chamados nos porões da ditadura de “telefone” – derrubaram Dermi. Durante um bom período, ele não foi capaz sequer de sair da cama. Passava o tempo todo coberto. Teve crises de paranoia e medo de tudo. Não podia trabalhar. O aperto financeiro desestabilizava ainda mais a família. Ele foi recuperando devagar a coragem de se levantar, ir à esquina, andar sozinho.

“Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vÍtima de choques elétricos e outras sevÍcias. ele foi jogado no chão e bateu a cabeça. maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade”

“Dermi não se destruiu. Transformou o trauma numa batalha pela vida e continua lutando pela dignidade humana”, avalia a psicanalista Miriam Schnaiderman, codiretora do documentário “Sobreviventes”, que narra experiências de pessoas que passaram por situações-limite. Enquanto Dermi tentava se recuperar, Darcy tinha de se desdobrar para dar conta da casa e dos filhos – do primogênito e de dois meninos que vieram depois. Carlos Alexandre demonstrou os primeiros sinais de isolamento já em Currais Novos. Não interagia comoutras crianças, tornou-se agressivo e andava sempre triste. Às vezes, acordava agitado procurando pela mãe: “Mamãe, onde é o barulho do trem?” A sede do Deops, onde ele esteve detido durante algumas horas, era na região da Estação da Luz. De lá, dava para ouvir o som do vai e vem das composições. Apesar de a família estar longe de São Paulo, onde a perseguição seria mais severa, os Azevedo eram constantemente vigiados pelos militares locais e discriminados pela vizinhança. Viviam sendo apontados como “bandidos”, “terroristas” e tratados como se tivessem alguma doença contagiosa. Carlos Alexandre cresceu sob intensa pressão, testemunhando as crises do pai e a inquietude da mãe. Chorava para não ir à escola. Não suportava ficar distante dos pais. A instabilidade e a dinâmica familiar contribuíram para aumentar o afastamento de Carlos Alexandre. “A perseguição afetou os outros filhos, mas não de maneira tão intensa quanto ele”, relata Dermi. As mudanças de casa e de cidade eram constantes a ponto de os meninos não serem capazes de criar laços de amizade ou se adaptar completamente à escola.

O único período de relativa calmaria e imobilidade durou cerca de quatro anos – entre 1981 e o início de 1985, quando os Azevedo moraram em Piracicaba, no interior paulista. A filha mais nova nasceu lá. Todos eram respeitados. Darcy e Dermi tinham vínculo com uma universidade do município – já não eram encarados como “bandidos” ou “terroristas”, mas como intelectuais. E a ditadura militar caminhava para o fim. A saída de Piracicaba foi traumática para Carlos Alexandre. “Era o único lugar em que eu tinha amigos. Foi aí que me isolei de vez. Parei de estudar e me tranquei em casa”, lembra. Carlos Alexandre tinha acabado de entrar na adolescência. No interior paulista, costumava brincar na rua, jogar bola e frequentar festinhas vestindo short e camiseta. Não se importava muito com o figurino. Os novos desafios da cidade grande o fizeram submergir no medo. Ele já não era mais convidado para festas, se sentia incapaz de dançar com as meninas e apanhava dos garotos cotidianamente. Quando tentava revidar, era pior. Apanhava mais. “Por ser introvertido, não ser muito bonito nem me vestir como eles, eu era humilhado e vivia sendo alvo de chacotas”, afirma. Carlos Alexandre sucumbiu à crueldade adolescente e se enterrou nas próprias fragilidades. Afirma ter passado cerca de sete anos (dos 13 aos 20) praticamente sem sair de casa. Tentou frequentar a escola. Não conseguiu. Nos momentos de nervosismo intenso, quebrava tudo o que encontrasse pela frente. Engordou 40 quilos em seis meses. Tentou o suicídio “algumas vezes”. Quando decidiu enfrentar o medo da rua, trabalhou como auxiliar de escritório.

“O meu filho apanhou dos policiais do deops porque estava chorando de fome. levou um tapa tão forte que cortou os lábios"

Ficou um ano no emprego – seu recorde com carteira assinada. Depois atuou como operador de microcomputador e diagramador. Interagir era tão penoso que Carlos Alexandre pediu demissão e foi demitido diversas vezes porque não suportava conviver com os colegas de trabalho. “As pessoas começavam a perguntar da minha vida: o que eu fazia, se tinha estudado, se tinha namorada, quem eu era, aonde eu ia. Acabava ficando um clima ruim”, conta. “Estar no meio de muitas pessoas é muito cansativo para mim. Falar também. Sair de casa e sentar num bar é um incômodo muito grande. Mas hoje já não entro em pânico porque estou em tratamento.” Um ou dois amigos visitam Carlos Alexandre esporadicamente. Vão ao apartamento que ele divide com a mãe na região central de São Paulo. Seus outros – raros – amigos são todos virtuais. Ao optar pela rede, ele se protege da sociedade. “Quando rompo o ciclo vicioso, consigo até ter uma vida. Mas tenho muito medo de recaídas”, diz. Atualmente, ele costuma sair três vezes por semana para ir à academia. De vez em quando, vai à banca comprar gibis japoneses. Sua rotina é singela. Mas Carlos Alexandre quer mais. “Não sou feliz. Sinto vergonha de não trabalhar. Também gostaria de ter uma família minha, com mulher e filhos. Mas tenho consciência de que devo dar um passo de cada vez. Talvez, com um pouco