segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Leilão de Libra.



Sugestão de Magna Moreira, via twitter.
Uso do poder estatal em Libra será teste para futuros leilões
Por: Sabrina Lorenzi, do Rio de Janeiro, (Edição de Raquel Stenzel) Reuters
18/10/2013
A greve dos petroleiros e as manifestações de movimentos sociais de esquerda contra o leilão de Libra desconsideram o que justamente afastou algumas das maiores petroleiras ocidentais do certame: o forte poder governamental sobre as reservas petrolíferas, com elevado potencial de retorno financeiro para o Estado brasileiro.
Os trabalhadores da Petrobras entraram em greve na quinta-feira, por tempo indeterminado, em protesto contra o leilão da área gigante do pré-sal, previsto para acontecer na segunda-feira. Manifestantes invadiram o prédio do Ministério de Minas e Energia em Brasília contra o que acreditam ser a venda da riqueza brasileira para empresas estrangeiras.
No entanto, o que estará em jogo no leilão da próxima semana é a viabilidade do regime de partilha, inédito no mundo, que busca atrair investidores pelo enorme volume de petróleo ofertado, a despeito das condições contratuais restritivas para as sócias das estatais Pré-sal Petróleo SA (PPSA) e Petrobras.
O comportamento da PPSA, poderosa estatal criada para representar a União na gestão da área de Libra, será o grande teste do novo regime de partilha de produção e determinará a continuidade deste modelo para os demais leilões do pré-sal, avaliam especialistas e executivos do setor consultados pela Reuters.
A presença de investidores interessados em explorar o volume de 8 bilhões a 12 bilhões de barris recuperáveis em Libra é tida como certa pelo setor, ainda que com a possibilidade de pouca ou nenhuma concorrência. Mas há dúvidas no mercado quanto a sustentação de novos leilões nesse mesmo formato.
As regras dão plenos poderes à PPSA para decidir sobre a estratégia de Libra. E entregam a operação da área à Petrobras. As estatais brasileiras terão pelo menos 65 por cento do poder de voto sobre as decisões estratégicas da área exploratória.
“O setor de petróleo vai observar como será a gestão da PPSA; estaremos atentos sobre como será usado todo o poder que lhes foi dado neste regime e sem dúvida isso deverá nortear os próximos leilões do pré-sal”, afirmou o ex-presidente no Brasil da gigante petrolífera britânica BG Luiz Costamilan, que prestou consultoria a interessados neste leilão.
A gestão das estatais brasileiras definirá se os próximos leilões do pré-sal vão atrair outras companhias além das 11 inscritas para a primeira rodada, ou se irá afugentar as existentes.
“É um modelo inédito no mundo … a PPSA tem muito poder sem investir”, disse recentemente Denis Palluat, presidente da francesa Total, inscrita para participar do leilão de Libra.
O importante para o governo, de acordo com avaliação de dois executivos do setor, que falaram sob condição de anonimato, é receber o bônus de 15 bilhões de reais e contar com a presença das asiáticas para realizar os pesados investimentos necessários ao desenvolvimento da área gigante.
“A razão principal do interesse dessas companhias orientais é o acesso a volumes e por isso elas podem aceitar um retorno talvez um pouco menor do que poderiam ‘majors’ como Exxon e Chevron, que não vão participar”, disse Costamilan, acrescentando que “não há dúvida” que haverá ofertas para o leilão.
Se inscreveram para o certame as estatais chinesas CNOOC e CNPC , bem como a japonesa Mitsui, a indiana ONGC e a malaia Petronas . A Sinopec, da China, também poderá ter participação indireta no leilão, por meio das inscritas Repsol Sinopec (uma parceira com a espanhola Repsol) e da Petrogal (parceria com a portuguesa Galp).
Também estão inscritas a colombiana Ecopetrol, a anglo-holandesa Shell e a francesa Total.
As empresas que eventualmente não conseguiram formar um consórcio com a Petrobras podem ter desistido de participar, por causa da força da estatal brasileira, avaliaram as fontes ouvidas pela Reuters.
Para a Petrobras, disse uma das fontes, é melhor mesmo que haja pouca concorrência, para que ela não seja obrigada a acompanhar eventuais propostas com pouco retorno financeiro.
As empresas disputarão até 70 por cento da participação na área de Libra, já que a Petrobras será a operadora da área com no mínimo 30 por cento de participação em qualquer consórcio que ficar com a área.
Quem oferecer a maior parcela de óleo à União ganhará a licitação. A parcela mínima que caberá à União é de 41,65 por cento do petróleo, descontados os custos de produção.
GIGANTISMO
O gigantismo de Libra e o alto custo de extração de petróleo no pré-sal ameaçam sobrecarregar a Petrobras. Sua capacidade de operar com rapidez no campo também é foco de atenção do setor. Há quem diga que o leilão vai desencorajar investimentos da estatal em outras áreas e limitar, a longo prazo, os benefícios da produção de petróleo.
Libra deverá atingir um pico de produção de 1,4 milhão de barris de petróleo por dia (bpd) entre 10 a 15 anos depois da assinatura do contrato, estimou a Agência Nacional de Petróleo (ANP) nesta semana, às vésperas do leilão.
Para alcançar esse pico, serão necessários de 12 a 18 plataformas e entre 60 a 80 barcos de apoio.
A presidente Dilma Rousseff espera que Libra possa gerar ganhos de 368 bilhões de reais ao longo de 35 anos, fazendo mais do que tornar o Brasil um país mais rico. Ao pagar pela melhoria de serviços como educação e saúde, diz ela, Libra também irá reduzir a grande distância entre ricos e pobres.
Mas as expectativas positivas não evitaram a insatisfação de segmentos da sociedade brasileira com o leilão, com a necessidade de convocar, inclusive, tropas do Exército, para assegurar o evento.
Em peça publicitária contra o leilão, sindicatos de petroleiros lembram que a presidente prometeu que não privatizaria o pré-sal. Cobram de Dilma Rousseff o fim dos leilões de petróleo. O que o comercial não diz é que o governo será soberano nas decisões e estratégia, incluindo prazos, planos e ritmo de desenvolvimento dos campos de Libra.
Os que protestam também parecem desprezar, por exemplo, que as exportações de petróleo pelas empresas do consórcio vencedor de Libra poderão ser canceladas caso o governo considere que há risco de desabastecimento de óleo ou derivados no País.
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Leilão de Libra.

Postado em 21 out 2013 por : Paulo Nogueira O campo de Libra Uma questão tem sido virtualmente ignorada — ou deliberadamente distorcida — no controvertido leilão do campo de libra: a presença da China. É a chamada boa notícia. Torcemos para que a China ganhe. É o melhor parceiro que se pode ter hoje. Em seu excelente livro “The Winner Take All”, que relata a corrida organizada e bem-sucedida chinesa em busca de recursos naturais que garantam seu futuro, a economista Dambisa Moyo mostra como a China rompeu o paradigma ocidental nessa área. Tradicionalmente, o ocidente promoveu guerras para tomar posse de áreas ricas em recursos naturais. Por meio das bombas, estabeleceu relações que eram absurdamente desfavoráveis para os países plenos de recursos. Veja o que os Estados Unidos fazem há anos no Oriente Médio, por exemplo, para assegurar petróleo. A China, por ter uma natureza diferente, foi por outro caminho, demonstra Dambisa. Busca recursos naturais tendo por base uma relação em que ambas as partes ganhem. (Na brilhante definição do intelectual britânico Bertrand Russell, feita há cerca de um século depois de uma temporada na China, é um ‘país artista’, não feito para guerras.) O papel da China na África ilustra perfeitamente isso. Dambisa, economista de prestígio internacional, está familiarizada com o quadro: é natural da Zâmbia. Em 2002, conta ela, a China deu 1,8 bilhão de dólares para países pobres africanos. O dinheiro foi empregado em coisas como o treinamento de 15 000 profissionais africanos, a construção de 30 hospitais e 100 escolas e o aumento de bolsas de estudo para estudantes. “Dois anos antes, a China perdoara dívidas de 1,2 bilhão de dólares de países africanos”, narra Dambisa. “Em 2003, perdoou mais 750 milhões de dólares.” O comércio bilateral entre a China e a África subiu de 10 bilhões de dólares em 2000 para 90 bilhões em 2009. “A China oferece uma alternativa à África ao assistencialismo”, disse Dambisa numa entrevista recente à revista Época. “Estimula o comércio e o empreendedorismo, e cria empregos nas regiões em que está presente. É uma troca ou simbiose. A China é muito melhor para a África do que os Estados Unidos ou a Europa.” Dambisa Não é à toa que os países africanos, como mostram pesquisas, prefiram amplamente as parcerias com a China, e não com os americanos ou as potências europeias. No Brasil, como se vê no livro de Dambisa, a China já é também um parceiro fundamental. Nos seis primeiros meses de 2010, a China multiplicou por 10 seus investimentos no Brasil e os elevou para 20 bilhões de dólares. Com isso, os chineses se tornaram os principais investidores internacionais no Brasil, à frente dos Estados Unidos. A China é hoje, além disso, o principal parceiro comercial do Brasil. Faltam ao Brasil recursos para explorar rapidamente o petróleo de Libra? Pena. Que se busquem parceiros, e entre estes não poderia haver ninguém melhor que os chineses. É patética, obtusa e demagógica a reação de líderes como Serra. “Agora vamos ficar numa relação de uma quase colônia da China, um neocolonialismo do Brasil em relação aos chineses, o que me parece incrível”, disse Serra esta semana. O que diria ele se a parceria estivesse prestes a ser travada com os americanos? Você pode imaginar. Incrível mesmo é alguém ainda dar ouvidos para o bestialógico neonacionalista de Serra.





8/10/2013 - Copyleft
Libra não é só petróleo
Em todo mundo o discurso conservador subsiste em estado comatoso. O empenho é para injetar sobrevida ao defunto, resistir e desgastar o anseio de mudança.
por: Saul Leblon
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Em todo o mundo o discurso conservador subsiste em estado comatoso desde o colapso da ordem neoliberal, em 2008. O empenho  é para  injetar sobrevida ao defunto, resistir e desgastar o anseio de mudança. Até que se generalize o descrédito nos partidos, na luta pelo desenvolvimento e no aprofundamento da democracia política e econômica, como instrumento de emancipação histórica e social.

A ascensão da Frente Nacional Fascista na França é um sintoma (leia a reportagem de Eduardo Febbro; nesta pág). Outro, o poder de uma falange, como o Tea Party, de empurrar até perto do abismo fiscal a nação mais poderosa da terra. São manifestações mórbidas recorrentes. Que afrontam  o anseio da mudança instalado no coração da sociedade pela maior crise capitalista desde 1929.

Quando o extraordinário acontece, as lentes da rotina já não conseguem  explicar  a vida.  A ‘redescoberta’ de Marx, analisada por Emir Sader nesta pág  (leia o blog do Emir), é um sintoma do anseio por um novo foco. É  mais que uma redescoberta intelectual. Essa é a hora em que o preconceito histórico  inoculado  contra o socialismo perde força. Até nos EUA.

Uma pesquisa feita pela Pew Research, no final de 2011, tentou medir esse ponto de mutação. Os resultados foram significativos:

a) na faixa etária entre 19 e 28 anos a menção ao ‘socialismo’  encontra receptividade favorável entre 49% dos jovens norte-americanos (entre 43% ela é negativa).

b) entre a população negra – açoitada pela crise - os dados são ainda mais expressivos: respectivamente 55% de aprovação ; 36%, rejeição.

c) a mesma medição, agora para  ‘capitalismo’, obteve os seguintes percentuais  nos grupos mencionados: 46% e 47%, entre os jovens; e 41% favorável e  51%  negativo, entre os negros.

A informação consta de um artigo de Michelle Goldberg, cuja íntegra será publicada  nesta página. A liquefação da agenda neoliberal e do preconceito anti-socialista não amenizam  a responsabilidade  de se erguer linhas de passagem críveis ao passo seguinte da história. No caso brasileiro, a operação envolve agravantes  de singularidade e circunstância.

Em primeiro lugar, a responsabilidade de  ser governo. Portanto, mais que nunca,  de erguer pontes que partam da correlação de força existente para superá-las, sem risco de regressão.

Em segundo lugar, os sinais de desgaste na confortável pista incremental,  pela qual o país  tem transitado  para responder  a  desafios seculares  com  avanços específicos .

Um terceiro agravante: o  crepúsculo  de um ciclo internacional de alta da liquidez e dos  preços das commodities. A inflexão externa  adiciona percalços à renovação do motor do desenvolvimento brasileiro.

Quarto,  os capitais e os grandes oligopólios não estão parados. O colapso financeiro acelerou a descentralização produtiva que define a nova morfologia  da industrialização no mundo. Travada pelo câmbio desfavorável,  a manufatura brasileira ficou de fora do novo arranjo global das cadeias  de tecnologia e  suprimento.

O país não  resgatará sua competitividade  sem recuperar o terreno perdido nessa área. A flacidez industrial  rebaixa  a produtividade sistêmica da sua economia. Com efeitos regressivos na geração dos excedentes indispensáveis à convergência da riqueza . É nesse horizonte de mutações e desafios que deve ser analisado um  acontecimentos que divide o campo progressista brasileiro. O  leilão de Libra.

A mega-reserva do pré-sal, capaz de conter acumulações equivalentes a até 13 bilhões de barris de  petróleo e gás, deve ser leiloada na próxima 2ª feira (21). Democratas e nacionalistas sinceros divergem. Petroleiros vão à greve.

Defende-se que a Petrobrás assuma sozinha a tarefa de extrair uma riqueza guardada no fundo do oceano que pode conter até 100 bilhões de barris.

A Petrobras tem o domínio da tecnologia para fazê-lo. É quem foi mais longe nessa expertise em todo o mundo.

Mas não dispõe dos recursos financeiros para  acionar esse trunfo na escala e no tempo imperativo. Paradoxalmente, em boa parte, porque cumpriu seu papel de estatal na luta pelo desenvolvimento. Os preços dos combustíveis no Brasil foram congelados pelo governo como instrumento  de controle da inflação. Durante anos. Sob protesto da república dos acionistas ,  cuja pátria é o dividendo. E nada mais.

Secundariamente, o leilão será feito porque o governo necessita também de recursos para mitigar a conta fiscal de 2013. Ademais do peso dos juros  no orçamento federal – exaustivamente criticado por Carta Maior - o Estado, de fato, realizou pesados dispêndios este ano e nos anteriores.

Em ações contracíclicas para impedir a internalização da crise mundial no Brasil. O conservadorismo reprova acidamente essas escolhas. Solertes entreguistas, súbito, pintam-se de verde-amarelo  em defesa da estatal criada por Vargas. A emissão conservadora alveja  o que chama de ‘ uso político da Petrobras  e da receita pública’ para financiar  ‘ações populistas’ , que não corrigem as questões estruturais  do país. A alternativa martelada  é  a ‘purga’ saneadora.

Contra a inflação, choque de juros (muito superior ao que se assiste). Contra o desequilíbrio fiscal, cortes impiedosos na ‘gastança’. Qual?  Qualquer gasto público destinado a fomentar o desenvolvimento, financiar a demanda,  reduzir a pobreza e combater a desigualdade. O ponto é: sem agir  a contrapelo dos interditos conservadores, desde 2008, o Brasil teria  hoje um governo progressista?
 Subsistiria  ao cerco de 2010 contra Lula e Dilma? Ou  da terra  ‘semeada’ pela recessão e o desemprego  emergiria a colheita devastadora? José Serra, que, ato contínuo, reverteria a regulação soberana do pré-sal, como, aliás,  prometera à Chevron. O governo fez a escolha oposta.  O resto é a história dos dias que correm.

Ao decidir pelo leilão de Libra está dobrando a aposta. Qual seja:  mais importante que adiar  Libra  para um futuro de hipotética autossuficiência exploratória,  é  aceitar a participação de terceiros, mas preservar e colher, antes, o essencial. O essencial são os  impulsos industrializantes  embutidos na regulação soberana  das maiores reservas  descobertas neste século em todo o planeta.

Um exemplo resume todos os demais. O Brasil  hospeda  a maior  concentração de plataformas submarinas do mundo. Uma em cada cinco unidades existentes está a serviço da Petrobrás.  Em dez anos, essa proporção vai dobrar.  Assim como dobra a produção prevista de petróleo em sete anos: dos atuais  2 milhões de barris/dia para 4,5 milhões b/d.

Entre uma ponta e outra repousa a chance de a industrialização brasileira engatar  um salto tecnológico e de escala, ancorado nas encomendas  e encadeamentos  do pré-sal. Emprego, produtividade, salários e direitos sociais estão em jogo nesse salto.  A convergência sonhada entre a democracia política, a democracia social e a democracia econômica depende, em parte, do êxito desse aggiornamento industrializante da economia brasileira.

O leilão do dia 21 é um pedaço dessa aposta. Que tem a torcida adversa daqueles que não enxergam nenhuma outra urgência no horizonte do desenvolvimento brasileiro, em plena agonia da ordem neoliberal. Exceto recitar  mantras do  defunto. Na esperança de ganhar tempo para que o desalento faça o serviço sujo: desmoralizar  a política e interceptar o salto histórico do discernimento social brasileiro.

Uma  retração econômica redentora cuidaria do resto, injetando disciplina  nas contas fiscais e ordem no xadrez  político. Para, enfim, providenciar aquilo que as urnas sonegam:  devolver  a hegemonia do país a quem sabe dar ao ‘progresso’  o sentido excludente e genuflexo que ele sempre teve por aqui.






quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Tempos de ditadura



Filho de militantes de esquerda, Carlos Alexandre foi preso e torturado quando era bebê. Cresceu agressivo e isolado. Aos 37 anos, ele ainda sente os efeitos dos anos de chumbo: vive recluso, sem trabalho nem amigos - sofre de fobia social

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiZ6duVr2NBZf0nCM9D5XYyya58-e1enMvas11Fi95vA2QXUiESV2U8pIPUdRMtILgLufcItWR9J1DGlG_oHhy9o9IJYGzkAtWuzi2Gndd6YT_AsZtyDQln-N7DwdsTOHb2-uyM-ZBAvs/s320/!cid_FFCBAB69D21A4E438CC8FE1E73B925BB@Andre.jpg- Solange Azevedo, na revista IstoÉ

Ele tem olhos de aflição e feições de dor. Suas palavras saem cadenciadas, são quase sussurros. “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura”, diz. “Os meus pais foram presos e eu fui usado para pressioná-los.” Carlos Alexandre Azevedo tinha 1 ano e 8 meses quando policiais invadiram a casa da família, na zona sul de São Paulo, e o levaram para a sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). Era 15 de janeiro de 1974. Bem armados e truculentos, os agentes da repressão o encontraram na companhia da babá – uma moça de origem nordestina conhecida como Joana. Chegaram dando ordens. Exigiram que os dois permanecessem imóveis no sofá. Apenas Joana obedeceu. Como castigo pelo choro persistente, Carlos Alexandre levou uma bofetada tão forte que acabou com os lábios cortados. Foram mais de 15 horas de agonia. O drama de Carlos Alexandre – um dos mais surpreendentes dos anos de chumbo – veio à tona no momento em que o governo brasileiro discute a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar casos de tortura, sequestros, desaparecimentos e violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Carlos Alexandre decidiu revelar sua história, com exclusividade, à ISTOÉ depois que o seu processo de anistia foi julgado pelo Ministério da Justiça. No dia 13 de janeiro, ele foi declarado “anistiado político”. Deve receber uma indenização de R$ 100 mil por ter sido vítima dos militares. “Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em Brasília, me senti compreendido.

As pessoas sabiam que o que eu vivi foi verdade”, alega. “A indenização não vai apagar nada do que aconteceu na minha vida. Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado falhou comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social.” Fragmentos da vida de Carlos Alexandre, hoje com 37 anos, estão guardados na memória do pai, o jornalistae cientista político Dermi Azevedo. Outros ficaram entre as lembranças da mãe, a pedagoga Darcy Andozia. “Minha família sempre foi muito retraída, sem diálogo. Não costumávamos falar sobre tortura. Esse assunto sempre foi tabu entre nós”, conta Carlos Alexandre. Ele descobriu o próprio passado ao remexer em gavetas, aos 10 ou 11 anos de idade. Misturado a fotografias antigas e a uma porção de papéis, encontrou o desenho de uma vaquinha, conhecida na época por simbolizar a “esperança”, com o seguinte recado: “Deops 1974: Quando você ficar mais velho, seus pais vão te contar a sua história.” Parte do sofrimento da infância lhe foi revelada pela mãe. “Cacá apanhou porque estava chorando de fome. Os policiais falavam que, naquela idade, ele já era doutrinado e perigoso”, lamenta Darcy. Presas políticas disseram ao pai que o menino fora torturado no Deops. “Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vítima de choques elétricos e outras sevícias. Ele foi jogado no chão e bateu a cabeça”, afirma Dermi. “Maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade.” Quando os agentes levaram Carlos Alexandre e a babá, Darcy não estava em casa – seria trancafiada no Deops horas depois.

“Até hoje sofro os efeitos da ditadura. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social”

Ela havia saído cedo em busca de ajuda para o marido preso. Aquela era a segunda invasão à residência dos Azevedo. Na noite anterior, policiais vasculharam todos os cômodos em busca de “material subversivo”. Encontraram um livro intitulado “Educação Moral e Cívica & Escalada Fascista no Brasil” e o consideraram uma injúria às autoridades. Dermi, Darcy e a educadora Maria Nilde Mascellani foram processados – e absolvidos – sob a acusação de tentar difamar o Estado brasileiro. Dermi e Darcy eram ligados aos padres dominicanos e a uma das principais vozes que lutavam contra a ditadura, o então cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Faziam parte da retaguarda do movimento de resistência – abrigavam militantes que se preparavam para embarcar para o Exterior. O período de cárcere foi tenso e doloroso. Darcy permaneceu mais de 40 dias na cadeia. Foi pressionada psicologicamente, mas não sofreu violência física. Dermi ficou cerca de quatro meses no xadrez. Apanhou muito. Quando já não suportava mais a dor, invocava o nome d’Ele: “Ai, meu Deus. Meu Deus.” Enquanto Darcy esteve atrás das grades, Carlos Alexandre foi cuidado pelos avós – e continuou a sofrer as consequências de escolhas que não foram suas. “Em certos momentos, tive raiva porque meus pais expuseram os filhos. Mas depois senti orgulho porque eles lutaram contra os abusos dos militares e fazem parte da história do Brasil”, diz. Carlos Alexandre padece de um transtorno chamado pela ciência de fobia social: um medo excessivo e persistente de se expor à avaliação alheia. Quem tem esse distúrbio se esquiva sistematicamente de contatos interpessoais – principalmente com pessoas do sexo oposto, desconhecidas ou autoridades – porque teme ser humilhado ou rejeitado.

O diagnóstico foi mencionado pela psicóloga Ana Maria Falvino, que tratou de Carlos Alexandre, num documento encaminhado à Comissão de Anistia. No texto, a psicóloga detalha a evolução do transtorno no paciente e situações relatadas pela família Azevedo. Mas não afirma categoricamente que o problema dele é consequência direta de tortura. As situações vividas por CarlosAlexandre, no entanto, o inserem no grupo de risco descrito pela medicina. De acordo com o médico Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, cerca de 30% dos casos de fobia social têm origem genética. Os outros 70% se devem a vivências complexas.Os pais são o primeiro modelo para a criança. Observar como eles lidam com as adversidades, se enxergam o ambiente social como fonte de prazer e alegria ou como algo desconfortável e ameaçador, se são tímidos ou têm muitos amigos, é de extrema importância para o bom desenvolvimento infantil. Bernik afirma que crianças provocadas e maltratadas por colegas e que vivem experiências marcantes de rejeição e de sofrimento são mais suscetíveis à fobia social na vida adulta. Logo que Dermi deixou a prisão, em maio de 1974, a família toda se mudou para a sua terra natal, o Rio Grande do Norte. Primeiro foi para Currais Novos, no interior do Estado. Em seguida para a capital, Natal. A violência psicológica e as agressões físicas – como as intermináveis sessões no pau de arara e os repetidos golpes na cabeça, chamados nos porões da ditadura de “telefone” – derrubaram Dermi. Durante um bom período, ele não foi capaz sequer de sair da cama. Passava o tempo todo coberto. Teve crises de paranoia e medo de tudo. Não podia trabalhar. O aperto financeiro desestabilizava ainda mais a família. Ele foi recuperando devagar a coragem de se levantar, ir à esquina, andar sozinho.

“Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vÍtima de choques elétricos e outras sevÍcias. ele foi jogado no chão e bateu a cabeça. maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade”

“Dermi não se destruiu. Transformou o trauma numa batalha pela vida e continua lutando pela dignidade humana”, avalia a psicanalista Miriam Schnaiderman, codiretora do documentário “Sobreviventes”, que narra experiências de pessoas que passaram por situações-limite. Enquanto Dermi tentava se recuperar, Darcy tinha de se desdobrar para dar conta da casa e dos filhos – do primogênito e de dois meninos que vieram depois. Carlos Alexandre demonstrou os primeiros sinais de isolamento já em Currais Novos. Não interagia comoutras crianças, tornou-se agressivo e andava sempre triste. Às vezes, acordava agitado procurando pela mãe: “Mamãe, onde é o barulho do trem?” A sede do Deops, onde ele esteve detido durante algumas horas, era na região da Estação da Luz. De lá, dava para ouvir o som do vai e vem das composições. Apesar de a família estar longe de São Paulo, onde a perseguição seria mais severa, os Azevedo eram constantemente vigiados pelos militares locais e discriminados pela vizinhança. Viviam sendo apontados como “bandidos”, “terroristas” e tratados como se tivessem alguma doença contagiosa. Carlos Alexandre cresceu sob intensa pressão, testemunhando as crises do pai e a inquietude da mãe. Chorava para não ir à escola. Não suportava ficar distante dos pais. A instabilidade e a dinâmica familiar contribuíram para aumentar o afastamento de Carlos Alexandre. “A perseguição afetou os outros filhos, mas não de maneira tão intensa quanto ele”, relata Dermi. As mudanças de casa e de cidade eram constantes a ponto de os meninos não serem capazes de criar laços de amizade ou se adaptar completamente à escola.

O único período de relativa calmaria e imobilidade durou cerca de quatro anos – entre 1981 e o início de 1985, quando os Azevedo moraram em Piracicaba, no interior paulista. A filha mais nova nasceu lá. Todos eram respeitados. Darcy e Dermi tinham vínculo com uma universidade do município – já não eram encarados como “bandidos” ou “terroristas”, mas como intelectuais. E a ditadura militar caminhava para o fim. A saída de Piracicaba foi traumática para Carlos Alexandre. “Era o único lugar em que eu tinha amigos. Foi aí que me isolei de vez. Parei de estudar e me tranquei em casa”, lembra. Carlos Alexandre tinha acabado de entrar na adolescência. No interior paulista, costumava brincar na rua, jogar bola e frequentar festinhas vestindo short e camiseta. Não se importava muito com o figurino. Os novos desafios da cidade grande o fizeram submergir no medo. Ele já não era mais convidado para festas, se sentia incapaz de dançar com as meninas e apanhava dos garotos cotidianamente. Quando tentava revidar, era pior. Apanhava mais. “Por ser introvertido, não ser muito bonito nem me vestir como eles, eu era humilhado e vivia sendo alvo de chacotas”, afirma. Carlos Alexandre sucumbiu à crueldade adolescente e se enterrou nas próprias fragilidades. Afirma ter passado cerca de sete anos (dos 13 aos 20) praticamente sem sair de casa. Tentou frequentar a escola. Não conseguiu. Nos momentos de nervosismo intenso, quebrava tudo o que encontrasse pela frente. Engordou 40 quilos em seis meses. Tentou o suicídio “algumas vezes”. Quando decidiu enfrentar o medo da rua, trabalhou como auxiliar de escritório.

“O meu filho apanhou dos policiais do deops porque estava chorando de fome. levou um tapa tão forte que cortou os lábios"

Ficou um ano no emprego – seu recorde com carteira assinada. Depois atuou como operador de microcomputador e diagramador. Interagir era tão penoso que Carlos Alexandre pediu demissão e foi demitido diversas vezes porque não suportava conviver com os colegas de trabalho. “As pessoas começavam a perguntar da minha vida: o que eu fazia, se tinha estudado, se tinha namorada, quem eu era, aonde eu ia. Acabava ficando um clima ruim”, conta. “Estar no meio de muitas pessoas é muito cansativo para mim. Falar também. Sair de casa e sentar num bar é um incômodo muito grande. Mas hoje já não entro em pânico porque estou em tratamento.” Um ou dois amigos visitam Carlos Alexandre esporadicamente. Vão ao apartamento que ele divide com a mãe na região central de São Paulo. Seus outros – raros – amigos são todos virtuais. Ao optar pela rede, ele se protege da sociedade. “Quando rompo o ciclo vicioso, consigo até ter uma vida. Mas tenho muito medo de recaídas”, diz. Atualmente, ele costuma sair três vezes por semana para ir à academia. De vez em quando, vai à banca comprar gibis japoneses. Sua rotina é singela. Mas Carlos Alexandre quer mais. “Não sou feliz. Sinto vergonha de não trabalhar. Também gostaria de ter uma família minha, com mulher e filhos. Mas tenho consciência de que devo dar um passo de cada vez. Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga recomeçar. Mesmo estando com 37 anos.”