Postado
em: 10 set 2012 às 12:42
Theotonio dos Santos e a Carta Aberta a FHC: uma
das manifestações públicas mais demolidoras da nossa história política recente
Fernando
Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil. Foto: divulgação
Segue uma Carta Aberta de Theotonio dos Santos, economista, cientista
político e um dos formuladores da Teoria da Dependência. Hoje é um dos
principais expoentes da Teoria do Sistema Mundo. Mestre em Ciência Política
pela UnB e doutor “notório saber” pela UFMG e pela UFF. Coordenador da cátedra
e rede UNU-UNESCO de Economia Global e Desenvolvimento sustentável – REGGEN.
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Meu caro
Fernando,
Vejo-me
na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em nome de
uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978 contra o Rui Mauro
Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo com um esforço
teórico comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos nos 1960.
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armário e se assumam politicamente’
A
discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a partir de uma
experiência política que reflete contudo este debate teórico. Esta carta
assinada por você como ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica e
politicamente de sua gestão. Quem a lê não pode compreender porque você saiu do
governo com 23% de aprovação enquanto Lula deixa o seu governo com 96% de
aprovação.Já discutimos em várias oportunidades
os mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo. Já no seu
governo vários estudiosos discutimos, o inevitável caminho de seu fracasso
junto à maioria da população.
Pois as
premissas teóricas em que baseava sua ação política eram profundamente
equivocadas e contraditórias com os interesses da maioria da população. (Se os
leitores têm interesse de conhecer o debate sobre estas bases teóricas lhe
recomendo meu livro já esgotado: Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas,
Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000). Contudo nesta oportunidade me cabe
concentrar-me nos mitos criados em torno do seu governo, os quais você repete
exaustivamente nesta carta aberta.O primeiro mito é de que seu governo foi um
êxito econômico a partir do fortalecimento do real e que o governo Lula estaria
apoiado neste êxito alcançando assim resultados positivos que não quer
compartilhar com você… Em primeiro lugar vamos desmitificar a afirmação de que
foi o plano real que acabou com a inflação.
Os dados
mostram que até 1993 a economia mundial vivia uma hiperinflação na qual todas
as economias apresentavam inflações superiores a 10%. A partir de 1994, TODAS
AS ECONOMIAS DO MUNDO APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10%.
Claro que em cada pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram como
os autores desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento
planetário. No caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu
governo, próxima dos 10% mais altos.
TIVEMOS
NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS ALTAS INFLAÇÕES DO MUNDO. E aqui chegamos no outro
mito incrível. Segundo você e seus seguidores (e até setores de oposição ao seu
governo que acreditam neste mito) sua política econômica assegurou a
transformação do real numa moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar
uma moeda que começou em 1994 valendo 0,85 centavos por dólar
e mantendo um valor falso até 1998, quando o próprio FMI exigia uma
desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu ministro da economia recusou-se a
realizá-la “pelo menos até as eleições”, indicando assim a época em que esta
desvalorização viria e quando os capitais estrangeiros deveriam sair do país
antes de sua desvalorização, O fato é que quando você flexibilizou o cambio o
real se desvalorizou chegando até a 4,00 reais por dólar. E não venha por a
culpa da “ameaça petista” pois esta desvalorização ocorreu muito antes da
“ameaça Lula”.
ORA, UMA
MOEDA QUE SE DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER CONSIDERADA UMA MOEDA
FORTE? Em que manual de economia? Que economista respeitável sustenta esta
tese? Conclusões: O plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial
que fez cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou
sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda
drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve acima
da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser altamente
desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artificialmente com um alto
valor que levou à crise brutal de 1999.
Segundo
mito – Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Meu Deus: um
governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões de reais em
1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o governo ao Lula,
oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de saber que
economista poderia sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais sérios de
irresponsabilidade fiscal em toda a história da humanidade.
E não
adianta atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos” das
dívidas dos estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa fé
daqueles que preferiam não enfrentar a triste realidade de seu governo. Um
governo que chegou a pagar 50% ao ano de juros por seus títulos para, em
seguida, depositar os investimentos vindos do exterior em moeda forte a juros
nominais de 3 a 4%, não pode fugir do fato de que criou uma dívida colossal só
para atrair capitais do exterior para cobrir os déficits comerciais colossais
gerados por uma moeda sobrevalorizada que impedia a exportação, agravada ainda
mais pelos juros absurdos que pagava para cobrir o déficit que gerava.
Este
nível de irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade fiscal
que o povo brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada
brasileiro pobre. Nem falar da brutal concentração de renda que esta política agravou
drasticamente neste pais da maior concentração de renda no mundo. Vergonha,
Fernando. Muita vergonha. Baixa a cabeça e entenda porque nem seus companheiros
de partido querem se identificar com o seu governo…te obrigando a sair sozinho
nesta tarefa insana.
Terceiro
mito – Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por
causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fernando,
não brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado à drástica
situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que pedir ajuda ao seu
amigo Clinton que colocou à sua disposição os 20 bilhões de dólares do tesouro
dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e
BID.
Tudo isto
sem nenhuma garantia. Esperava-se aumentar as exportações do pais para gerar
divisas para pagar esta dívida. O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo
com a espetacular desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em
dólar para pagar a dívida. Não tem nada a ver com a ameaça de Lula. A ameaça de
Lula existiu exatamente em consequência deste fracasso colossal de sua política
macroeconômica. Sua política externa submissa aos interesses norte-americanos,
apesar de algumas declarações críticas, ligava nossas exportações a uma
economia decadente e um mercado já copado. A recusa dos seus neoliberais de
promover uma política industrial na qual o Estado apoiava e orientava nossas
exportações.
A loucura
do endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar inversões
públicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de
dólares de empresas brasileiras. Os juros mais altos do mundo que inviabilizava
e ainda inviabiliza a competitividade de qualquer empresa. Enfim, UM FRACASSO
ECONOMICO ROTUNDO que se traduzia nos mais altos índices de risco do mundo,
mesmo tratando-se de avaliadoras amigas. Uma dívida sem dinheiro para pagar…
Fernando, o Lula não era ameaça de caos. Você era o caos. E o povo brasileiro
correu tranquilamente o risco de eleger um torneiro mecânico e um partido de
agitadores, segundo a avaliação de vocês, do que continuar a aventura econômica
que você e seu partido criou para este país.
Gostaria
de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso fazê-lo nem
no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido Francisco Weffort
(neste então secretário geral do PT) e não criou um só museu, uma só campanha
significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da “descoberta do
Brasil”. E no plano educacional onde você não criou uma só universidade e
entrou em choque com a maioria dos professores universitários sucateados em
seus salários e em seu prestígio profissional.
Não
Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse ser feito por um medíocre
presidente.Lamento muito o destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai
ficar sem mandato, mas esta é a política. Vocês vão ter que revisar
profundamente esta tentativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica
tão fortemente nosso povo. E terão que pensar que o capitalismo dependente que
São Paulo construiu não é o que o povo brasileiro quer. E por mais que vocês
tenham alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças
internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia assegurar ao PSDB
um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão ficar na nossa história com um
episódio de reação contra o verdadeiro progresso que Dilma nos promete
aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade é o verdadeiro
fundamento de uma política progressista.
E dessa
política vocês estão fora. Apesar de tudo isto, me dá pena colocar em choque
tão radical uma velha amizade. Apesar deste caminho tão equivocado, eu ainda
gosto de vocês ( e tenho a melhor recordação de Ruth) mas quero vocês longe do
poder no Brasil. Como a grande maioria do povo brasileiro. Poderemos bater um
papo inocente em algum congresso internacional se é que vocês algum dia
voltarão a frequentar este mundo dos intelectuais afastados das lides do poder.
Com a
melhor disposição possível, mas com amor à verdade, me despeço.
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